É preciso comparar situação patrimonial antes e depois da operação para verificar a ocorrência de doações ocultas

Nos últimos anos, a estruturação patrimonial na forma de pessoas jurídicas (holdings patrimoniais) tem se intensificado tanto como forma de otimização e profissionalização da administração dos ativos quanto como planejamento tributário (Imposto de Renda) e sucessório. Tem-se observado, no entanto, a manipulação dos valores dos bens integralizados ao capital das empresas para acobertar doação entre sócios, normalmente familiares.

A legislação brasileira permite que o capital social das sociedades seja formado a partir da integralização de quaisquer bens suscetíveis de avaliação em dinheiro[1]. Quanto ao valor a ser atribuído ao bem para a referida integralização temos uma importante distinção, a depender do tipo de entidade:

  1. Tratando-se de integralização ao capital de Sociedade Anônima, a avaliação dos bens é feita por três peritos ou por empresa especializada, nomeados em assembleia-geral dos subscritores[2];
  2. No caso de integralização ao capital dos demais tipos de pessoas jurídicas, as pessoas naturais podem transferir bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens (IR) ou pelo valor de mercado. Se optarem pelo valor de mercado, a eventual diferença a maior será tributável como ganho de capital[3].

A constituição de sociedades empresariais segue, via de regra, a lógica de mercado onde se presume a onerosidade das operações praticadas entre pessoas interessadas em empreender ou investir seu capital objetivando auferir o máximo de ganhos possível.

No entanto, nas holdings patrimoniais do tipo familiar, criadas como forma alternativa de planejamento sucessório, não há lógica de mercado. Há pessoas interessadas exatamente em transferir patrimônio a título gracioso, normalmente de uma geração da família a outra, utilizando uma forma mais ágil e menos burocrática que o procedimento convencional de inventário (além, é claro, de outras vantagens que a estruturação patrimonial na forma de pessoa jurídica oferece).

Dessa forma, quando a sociedade é constituída seguindo a lógica negocial, há uma preocupação em integralizar os bens a valor de mercado, mas quando a constituição se dá entre pessoas que possuem vínculos afetivos ou de parentesco o mais comum é que os bens sejam integralizados pelo valor constante na DIRPF do sócio. Convenhamos que o diferimento do pagamento do imposto de renda incidente sobre o ganho de capital é um excelente motivo para que assim se proceda.

A integralização de capital, em si, é sempre uma transmissão onerosa, pois há a alteração de titularidade do direito de propriedade (da pessoa do sócio para a pessoa da sociedade) e o sócio recebe em contrapartida à integralização do bem o direito de propriedade de títulos representativos do capital da empresa (ações ou quotas).

A Constituição Federal, visando privilegiar a livre iniciativa que, afinal, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil[4], concede imunidade a essa transmissão, exonerando as partes (sócio e sociedade) de pagar o Imposto sobre a transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis – ITBI, de competência municipal[5]. Sendo, a integralização de capital, uma operação onerosa, não haveria, em tese, nenhuma circunstância que pudesse ser caracterizada como fato gerador do ITCMD.

Vamos, no entanto, analisar uma série de exemplos que nos levarão a concluir o contrário, ou seja, há sim a possibilidade de ocorrer evasão fiscal do ITCMD em uma doação, acobertada por um procedimento de integralização de capital:

Exemplo 1: As senhoras Sônia e Dúnia, proprietárias de um imóvel rural na cidade de Santa Salete-SP (na proporção de 50% cada uma), com valor de mercado de R$ 500.000,00 e valor histórico (constante das declarações de Imposto de Renda) de R$ 100.000,00, resolvem constituir a empresa Raskolnikova e Marmeladova Ltda. Para tanto, estabelecem no contrato social que o capital da empresa, formado por 500 mil quotas (com valor de R$ 1,00 cada quota) será realizado mediante a integralização do referido imóvel e as quotas serão divididas 50% para cada uma.

Perceba, neste exemplo, os seguintes pontos:

  1. Integralização do imóvel pelo valor de mercado;
  2. Os valores, tanto de mercado quanto de registro, das quotas resultantes da incorporação do imóvel ao capital social são exatamente iguais ao valor de mercado do imóvel integralizado;
  3. As sócias permaneceram com a propriedade das quotas no mesmo percentual que possuíam do imóvel, ou seja, não houve prejuízo patrimonial.

No patrimônio das sócias teremos uma mutação meramente qualitativa: antes, cada uma possuía R$ 250.000,00 em imóvel e passará, cada uma, a possuir R$ 250.000,00 em quotas representativas do capital social da empresa Raskolnikova e Marmeladova Ltda. Não há, nesse caso, fato gerador do ITBI, tampouco do ITCMD.

Exemplo 2: As senhoras Sônia e Dúnia, proprietárias de um imóvel rural na cidade de Santa Salete-SP (na proporção de 50% cada uma), com valor de mercado de R$ 500.000,00 e valor histórico (constante das declarações de Imposto de Renda) de R$ 100.000,00 resolvem constituir a empresa Raskolnikova e Marmeladova Ltda. Para tanto, estabelecem no contrato social que o capital da empresa, formado por 100 mil quotas (com valor de R$ 1,00 cada quota) será realizado mediante a integralização do referido imóvel e as quotas serão divididas em 50% para cada uma.

Perceba, desta vez:

  1. Integralização do imóvel pelo valor histórico (permitido pela Lei 9.249/1995);
  2. O valor de registro das quotas resultantes da incorporação (R$ 100.000,00) não é igual ao valor de mercado do imóvel integralizado (R$ 500.000,00);
  3. O valor de mercado das quotas é igual ao valor de mercado do imóvel (como o único ativo da empresa é o imóvel com valor de mercado de R$ 500.000,00 e não existe nenhum passivo, o valor de mercado da empresa é, também, R$ 500.000,00);
  4. As sócias permaneceram com a propriedade das quotas no mesmo percentual que possuíam do imóvel, ou seja, não houve prejuízo patrimonial.

Sobre esse caso havia uma discussão sobre o alcance da regra imunizante prevista no artigo 156, § 2° da Constituição. O STF julgou recentemente (dia 04 de agosto de 2020) o RE de número 796.376 e decidiu por maioria de sete votos a quatro que há incidência de ITBI na incorporação de imóveis ao patrimônio das pessoas jurídicas no valor que exceder o capital social integralizado. O contribuinte, via de regra, será o adquirente (sociedade), mas há que se observar a legislação municipal.

Exemplo 3: As senhoras Sônia e Dúnia, proprietárias de um imóvel rural na cidade de Santa Salete-SP (na proporção de 50% cada uma), com valor de mercado de R$ 500.000,00 e valor histórico (constante das declarações de Imposto de Renda) de R$ 100.000,00 resolvem, juntamente com o sr. Rodion, irmão de Dúnia e marido de Sônia (casado no regime de separação de bens), constituir a empresa Raskolnikova e Marmeladova Ltda. Para tanto, estabelecem no contrato social que o capital da empresa, formado por 150 mil quotas (com valor de R$ 1,00 cada) será realizado mediante a integralização do referido imóvel, por parte das duas senhoras, e por R$ 50.000,00 em dinheiro integralizado pelo sr. Rodion. As quotas serão divididas da seguinte maneira: 50.000 quotas para cada sócio.

Perceba, agora:

  1. Integralização do imóvel pelo valor histórico (permitido pela Lei 9.249/1995);
  2. O valor de registro das quotas resultantes da integralização (R$ 150.000,00) não é igual à soma do valor de mercado dos bens integralizados (R$ 550.000,00).
  3. As quotas sociais pertencentes às senhoras Sônia e Dúnia estão registradas por R$ 100.000,00, no entanto, possuem valor de mercado de R$ 366.666,66;
  4. O Sr. Rodion, que integralizou o valor de R$ 50.000,00 em dinheiro, passou a ser proprietário de quotas sociais registradas pelo valor de R$ 50.000,00, mas que possuem valor de mercado de R$ 183.333,33;
  5. Vejamos a situação patrimonial de cada um dos sócios antes e depois da constituição da empresa:

tabela artigo jeffersonitcmd

Os elementos característicos do contrato de doação são:

  • Natureza contratual;
  • Um elemento subjetivo: o animus donandi (intenção de fazer uma liberalidade);
  • Um elemento objetivo: o prejuízo patrimonial, ou seja, a transferência de bens ou vantagens para o patrimônio de outra pessoa, natural ou jurídica e;
  • A aceitação (expressa ou tácita).

No exemplo, a presença de um instrumento formal (contrato social) que opera efeitos patrimoniais torna a natureza contratual e a aceitação evidentes.

O elemento objetivo (prejuízo patrimonial) que não existia nos exemplos 1 e 2, fica evidente no exemplo 3 (estamos considerando que, no exemplo em discussão, não houve qualquer tipo de compensação financeira). As sócias Sônia e Dúnia possuíam patrimônio de R$ 250.000,00 cada e, após a integralização do imóvel no ato de constituição da empresa, dados os termos do contrato, passaram a ter o patrimônio de R$ 183.333,33 cada. O sócio Rodion, por sua vez, experimentou um aumento em seu patrimônio exatamente igual à redução suportada pelas duas sócias, ou seja, parte do patrimônio das sócias Sônia e Dúnia foi transferido para Rodion. Caracterizado, dessa forma, o prejuízo patrimonial.

Quanto ao elemento subjetivo (animus donandi) temos que a integralização do imóvel por valor histórico é uma faculdade. As sócias poderiam tê-lo integralizado pelo valor de mercado, convencionando no contrato que cada uma teria a propriedade de 5/11 das quotas (45,45%). A sociedade poderia,alternativamente, ter sido constituída por 550.000 quotas, das quais 250.000 pertenceriam a cada uma delas e 50.000 pertenceriam a Rodion.

Diante da análise do presente caso, fica evidenciada que a transferência patrimonial das sócias para Rodion ocorreu de forma desinteressada e “sem estarem obrigadas”, o que caracteriza o animus donandi.

É muito comum, na constituição de holdings patrimoniais familiares, a formação do capital social da forma como exemplificamos no Exemplo 3, principalmente quando a holding é constituída entre pais, proprietários dos bens os quais se pretende incluir no planejamento sucessório, e filhos (ou outros sucessores) que não detêm ou detêm poucos bens. No Exemplo 3 teriam ocorrido duas doações: doação de R$ 66.666,66 de Sônia para Rodion e doação de R$ 66.666,66 de Dúnia para Rodion.

No Exemplo 3, aliás, teriam ocorridos os fatos geradores dos dois impostos: ITBI e ITCMD. O ITBI em virtude da transmissão onerosa dos bens do sócio para a sociedade sobre o quantum representado pela diferença entre o valor de mercado dos bens e o valor registrado no Capital Social e o ITCMD em virtude da transmissão a título gratuito de patrimônio de um sócio para outro, acobertada pelo processo de integralização.

É preciso, portanto, quando ausentes as motivações típicas de mercado, comparar a situação patrimonial dos sócios antes e depois da integralização de capital para verificar a ocorrência de doações ocultas. Tais doações configuram-se fato gerador do ITCMD e, observadas as demais condições pertinentes (como limites de isenção eventualmente previstos nas legislações estaduais), estarão sujeitas ao lançamento do imposto.


[1] Artigo 7° da Lei 6.404/76

[2] Artigo 8° da Lei 6.404/76

[3] Artigo 23 da lei 9.249/95

[4] Artigo I, inciso IV da Constituição Federal.

[5] Artigo 156, § 2° da Constituição Federal.