Mesmo com compensação pela União, governos regionais enfrentam perdas com arrecadação de ICMS e repasses do fundo de compensação e podem ter em 2024 um ano ‘difícil’

Mesmo com a compensação de perdas de ICMS pela União e aumento da alíquota do imposto em alguns Estados, as receitas correntes no agregado dos 26 Estados e Distrito Federal caíram 1,8% em termos reais em 2023 contra o ano anterior.

A queda foi influenciada pelo recuo real de 3,2% na arrecadação de ICMS e de 1,4% nos repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Em sentido contrário ao das receitas, as despesas correntes cresceram 3,3%, puxadas por gastos com pessoal, que avançaram 5,1%.

O quadro de 2023, apontam especialistas e representantes de Estados, mostra que 2024 poderá ser “bem difícil” para parte dos entes, com a esperada desaceleração econômica, em ano que a demanda por reajustes salariais deve continuar, acompanhada por pressões de gastos resultantes das campanhas para as eleições municipais, e sem a ajuda da compensação de perdas de ICMS, já que os valores deste ano foram antecipados em 2023. Alguns Estados, porém, observam atentamente o aumento da arrecadação da União em 2024, o que pode favorecer repasses obrigatórios aos Estados.

“Os dados mostram que temos um problema grande na receita e que a elevação da alíquota padrão do ICMS no ano passado em alguns Estados não conseguiu recuperar a arrecadação do imposto no agregado. Ao mesmo tempo o aumento robusto da despesa corrente é preocupante. De 2024 em diante o vão entre receita e despesa deve se alargar”, diz Gabriel Leal de Barros,
economista e sócio da Ryo Asset. “Em 2024 devemos ver a pressão por salários e concursos do governo federal transbordar para Estados e prefeituras.”

O quadro desfavorável no fluxo de receitas e despesas foi generalizado entre os Estados em 2023. Em nove dos 27 entes federados as receitas correntes caíram enquanto as despesas correntes aumentaram.
Nos 18 entes restantes, em 14 as receitas subiram, mas em ritmo menor que o do crescimento das despesas.

O indicador de despesa de pessoal, principal gasto dos Estados, também se deteriorou de 2022 para 2023. No ano passado a despesa de pessoal do Poder Executivo medida em relação à Receita Corrente Líquida (RCL) avançou em 21 dos 27 entes federados, com seis Estados – Rio de Janeiro, Paraíba, Acre, Roraima, Minas Gerais e Rio Grande do Norte – acima do limite prudencial de 46,55% estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Os três últimos Estados romperam também o teto de 49% estabelecido pela mesma lei.

Em 2022 apenas três Estados estavam acima do limite prudencial e o governo potiguar era o único que havia rompido o teto. Nove Estados tiveram queda de receita e em 14 alta não acompanhou ritmo das despesas. Os dados foram retirados pelo Valor dos relatórios fiscais enviados pelos Estados à Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Foram considerados despesas empenhadas e receitas realizadas. Para comparação em termos reais, os dados de 2022 foram atualizados pelo IPCA.

Representantes dos governos atuais sinalizam que os indicadores poderiam ter sido piores sem receitas extraordinárias que entraram no ano passado. Sancionada em outubro de 2023, Lei Complementar 201 (LC 201/2023) estabeleceu R$ 27,1 bilhões em compensação da União aos Estados pela perda de ICMS em 2022.

Naquele ano, leis federais resultaram em redução de alíquotas do imposto estadual sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações.

A LC 201/2023 estabeleceu cronograma de compensação pela União até 2025, com parte do ressarcimento a ser feita com abatimento no pagamento de dívida e parte com transferências de recursos do governo federal aos Estados.

Além dos valores devidos em 2023, o governo federal também transferiu ao fim do ano passado cerca de R$ 10 bilhões como antecipação dos valores que seriam pagos em 2024.

A compensação contribuiu para uma alta de 7,3% nas transferências correntes aos Estados em 2023, contra 2022. Carlos Eduardo Xavier, secretário de Tributação do Rio Grande do Norte, diz que essa compensação contribuiu para aumento de 8,7% na receita corrente do Estado. Ele destaca que houve também receitas extraordinárias do próprio Estado, como a venda de folha de pagamento, que gerou R$
384 milhões a mais ao Estado no ano passado. Além disso, lembra, de abril a dezembro o a alíquota padrão do ICMS potiguar subiu a 20%, ante 18% praticados anteriormente.

A lei para aumento do imposto no Estado foi aprovada ainda em 2022, porém, estabelecia a alíquota maior somente até dezembro de 2023 e o governo estadual não conseguiu estender o aumento para este ano. Outra ajuda para a receita de ICMS veio de um Refis, que trouxe receita adicional de R$ 250 milhões em 2023.

O programa de parcelamento e a elevação de alíquotas, junto com aperfeiçoamento do controle de arrecadação e fiscalização, diz, propiciaram elevação dos ingressos de ICMS. Segundo dados dos relatórios fiscais, a receita de ICMS do Estado cresceu 10,1% em termos reais em 2023.

“Para 2024 o cenário será mais desafiador porque não teremos alíquota mais alta de ICMS, nem Refis, nem venda de folha, nem a compensação da União. Será bem difícil. Por enquanto as receitas do FPE vieram melhor em janeiro e fevereiro e trabalharemos para ter crescimento no ICMS, mas longe da magnitude que tivemos no ano passado”, afirma o secretário.

Xavier diz que o governo estuda também alternativas para receitas extraordinárias.

O conjunto favorável para as receitas em 2023 não impediu, porém, o Estado de avançar na despesa de pessoal em relação à RCL.

O indicador potiguar avançou de 53,37% para 56,94% da RCL do fim de 2022 para o ano passado, 7,94 pontos percentuais acima do teto da LRF.

O desafio em relação aos gastos com folha está no magistério, porque a legislação do Rio Grande do Norte, explica, determina que o reajuste do piso seja linear para todos da carreira, mesmo para quem está em patamares mais altos de vencimento. “É o único Estado que tem essa legislação”, diz.

O desempenho de 2023 e o cenário esperado para 2024, avalia Leal de Barros, farão com que os Estados retomem o debate de problemas estruturais que ficaram de lado desde 2020, quando eclodiu a pandemia de covid-19, até 2022, quando a arrecadação ainda foi beneficiada por inflação e altas cotações de commodities.

Do lado das receitas, a questão da corrosão da base de ICMS deve voltar à mesa de debates, ao mesmo tempo que o aumento de despesas de pessoal deve trazer de volta a agenda de reformas estruturais, como a administrativa.

Xavier explica que ao fim do ano passado o governo potiguar aderiu formalmente ao Programa de Equilíbrio Fiscal oferecido pelo Tesouro. O compromisso, diz, é de redução de 10% ao ano da despesa de pessoal.

No Rio Grande do Sul também houve efeito da compensação de ICMS antecipada pelo governo federal. A arrecadação de ICMS em 2023 caiu 1,1% em termos reais, ainda sob efeito das mudanças no imposto em 2022. Mesmo assim, as receitas correntes do Estado avançaram 7% reais, e a RCL, 6,9%, em alta equivalente a R$ 6 bilhões de 2022 para 2023.

Contribuíram para isso, informa a Fazenda gaúcha, a compensação de perdas de arrecadação de 2022 pela União: foram R$ 2,3 bilhões brutos. Parte do valor foi compensada com as parcelas da dívida e parte vinda na forma de transferência financeira.


Houve também receitas extraordinárias do próprio Estado, que não se repetirão em 2024, como o registro orçamentário de R$ 1,4 bilhão de dividendos da Corsan, companhia estadual de saneamento.
O aumento da RCL permitiu ao governo gaúcho encerrar 2023 com um indicador de despesa de pessoal de 45,03%, melhor que o registrado no decorrer do ano passado e ao fim de 2022, de 47,88%. O limite chegou a se aproximar do teto no primeiro quadrimestre de 2023, quando chegou a 48,81%. Em nota, a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul diz que deve manter o controle rigoroso da despesa, condições do Regime de Recuperação Fiscal ao qual aderiu em 2022.

No fim do ano passado o governo gaúcho chegou a propor uma elevação da alíquota padrão do ICMS mas, em razão da resistência para aprovação na Assembleia Legislativa, adotou como alternativa uma revisão dos benefícios fiscais, que entra em vigor a partir de abril.

Para Leal de Barros, um caminho possível para o Estados para reverter a perda de receitas no ICMS é um “pente-fino” em benefícios tributários do imposto, paralelamente a uma agenda de modernização dos mecanismos de arrecadação e fiscalização, ainda que essa situação seja heterogênea entre os Estados.
Renata dos Santos, secretária de Fazenda de Alagoas, conta que o Estado tem feito um mapeamento da atividade econômica do Estado e seu impacto na arrecadação de ICMS. O Estado, diz, tem recebido grande fluxo de turistas e teve a atividade favorecida com a política de reajuste do salário mínimo e com a ampliação do Bolsa Família em 2023. O aumento da alíquota padrão do ICMS de 17% para 19% a partir de abril do ano passado e mudanças na estrutura do imposto também permitiram ao Estado fechar 2023 com alta real de 11,7% na arrecadação do tributo. As receitas correntes do Estado subiram 4,8% enquanto as despesas correntes avançaram 8,1%.

Segundo Santos, o aumento dos gastos correntes reflete a abertura de dois novos presídios e para fazer frente a essa nova despesa o Estado manteve o nível dos demais gastos e suportou com receitas próprias o que não foi possível financiar com recursos de FPE. Para 2024, diz, o controle rígido de despesas deve ser mantido.

O Estado fechou 2023 com R$ 2,68 bilhões em investimentos, com alta de 2,8% em relação a 2022 e avanço de 148,7% reais contra o R$ 1,1 bilhão em 2019, também primeiro ano do mandato do governador anterior. A ideia, diz a secretária, é manter o mesmo nível alto de investimentos anual no decorrer de toda gestão atual. Os investimentos do ano passado, diz ela, foram possibilitados por superávits de períodos anteriores e por operações de crédito. No ano passado, conta, o Estado contratou cerca de R$ 1 bilhão em financiamentos.

Para Leal de Barros, o estímulo que o governo tem dado com a oferta de operações de crédito é preciso ser acompanhado com cuidado. Isso, em alguns entes, pode piorar o quadro à frente, porque parte dos gastos em investimentos resulta também em aumento da despesa de pessoal e custeio.

Via Valor Econômico