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Presidente de entidade que representa auditores fiscais estaduais, Francelino Valença afirma que tributação dos “fundos dos super-ricos” é medida de justiça tributária e refuta alegação de que a taxação provocará saída de recursos do país

Para o presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), Francelino Valença, as medidas anunciadas pelo governo federal para taxar os super-ricos foram bem-vindas, mas devem ser o primeiro passo rumo a um sistema tributário progressivo.

Em entrevista ao Correio, Valença afirmou que a hipótese de retirada dos patrimônios do país em caso da taxação dos ricos é “uma narrativa de ameaça”, e que os estudos e as experiências estrangeiras mostram que não é isso que acontece na prática. Embora considere a primeira fase da reforma tributária positiva, ele alerta também contra dispositivos incluídos no texto pelos deputados que burlam a tributação de grandes fortunas. No caminho para uma tributação progressiva, o presidente da Fenafisco também defende o fim das benesses para lucros e dividendos, e o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda.

Como a Fenafisco enxerga as medidas anunciadas pelo governo para taxar os super ricos?

A gente vê com muito bons olhos. Ainda tem muitas brechas, mas talvez seja o início de uma mudança de paradigma em relação à taxação de quem, de fato, tem renda para ser taxado. O secretário (de Política Econômica) Guilherme Mello costuma usar a metáfora do condomínio, que eu acho, inclusive, que é do ministro (Fernando Haddad): “Todo mundo paga condomínio, menos quem está na cobertura”. Vemos com bons olhos, só que tem um detalhe. Está se taxando o fundo exclusivo, que é quem tem patrimônio acima de R$ 10 milhões. A expectativa do governo é arrecadar algo em torno de R$ 6 bilhões. Do offshore, a gente tem um pouco de dúvida se vai ter efetividade. Porque os paraísos fiscais dificilmente vão dar informações, eles são conhecidos por isso, mas há uma expectativa de R$ 7 bilhões. Acho que é o início de uma mudança. O grande desafio é o Congresso aprovar. Acredito que vai ter uma tensão de forças, de alguns segmentos que não têm interesse em aprovar essas medidas.

A medida impacta os poucos mais ricos e aumenta a arrecadação. Ela beneficia também a maioria de trabalhadores?

Lógico que isso não muda o nosso sistema tributário como um todo, que não deixa de ser regressivo. Fizemos um estudo que mostrou que, até o teto do STF (cerca de R$ 40 mil mensais) há uma alíquota progressiva. Depois, isso cai vertiginosamente. Nós nos perguntamos o porquê, e uma das deduções lógicas que fizemos é porque ali está o trabalho assalariado, especialmente dos servidores públicos, taxados na fonte. Passado esse patamar, são outros tipos de renda: capital, aluguel, ações, empresas, dividendos. O governo também disse que essa medida é para financiar a isenção do Imposto de Renda. Quem pode criticar uma medida dessas, que se traduz em mais justiça, quando você desonera quem ganha até dois salários mínimos? É muito pouco para estar em uma tabela de Imposto de Renda, com a renda média do nosso país, que é baixa em relação aos países desenvolvidos.

Há preocupação com a retirada de capital por parte dos super-ricos, com essa taxação?

O que a gente tem é uma narrativa construída ao longo dessas décadas, de ameaça. Essa é a verdade. Tornando grande parte da sociedade, 99% da população, refém de um pequeno e seleto grupo dizendo que: “se me taxar, eu saio”. Ou seja, só fica aqui se não pagar nada. Isso não é razoável. Se não está pagando nada, então pode sair, porque não vai ter, teoricamente, prejuízo. Não contribui com nada. Mas os estudos apontam o contrário. As taxações progressivas sobre a renda — não estou falando de imposto sobre grande fortuna — não fizeram as pessoas que empreendem, que têm patrimônio, a retirá-lo do país. Isso não aconteceu nos países desenvolvidos, na Alemanha, na França. Nos Estados Unidos, por exemplo, eu nunca vi comentarem que os grandes ricos tiraram seu patrimônio. A nossa taxação é que é muito diversa da dos países desenvolvidos. Dizer que se aproximar de nações desenvolvidas vai espantar o capital é algo surreal. Isso não vai acontecer, e não aconteceu em lugar nenhum do mundo. O que acontece é que há uma casta que praticamente não paga tributo no país. Isso não é razoável, justo, ético, ou moral. Não faz parte de nenhum estado republicano, democrático. Se aproxima de países ditatoriais. As empresas nacionais não vão sair do solo nacional. Os grandes patrimônios, as grandes fazendas, não vão vender e sair daqui. Está na hora de a gente ter coragem para enfrentar essa necessária mudança para o país.

A primeira parte da reforma tributária também avançou na progressividade da taxação?

Na reforma tributária, aprovada na Câmara, em um dos mecanismos que mais foram alardeados na questão de justiça fiscal, a progressividade sobre a herança, foi colocado um dispositivo que permite que se criem fundações, à semelhança dos Estados Unidos, e que as pessoas ultra-ricas sequer paguem tributos. Você joga para a fundação e não paga nem 1%. Isso é um absurdo que passou na reforma tributária. Além disso, aquela narrativa de que vai tributar IPVA sobre jatinhos e embarcações não vai acontecer. Foi criado também um mecanismo que propicia que quem tem aeronaves, se um bilionário presta serviço a outro bilionário, está isento, não vai pagar IPVA. E, se botar no iate uma rede de pesca, não vai pagar, porque pesca artesanal não paga imposto. Ao mesmo tempo em que vimos avanço em uma linha, a gente também vê o recrudescer da outra.

Quais são os próximos passos em direção a um sistema tributário progressivo?

O primeiro passo é acabar com esses mecanismos da reforma. O segundo deveria ser acabar com essa absurda benesse que a gente tem de não taxar dividendos nem lucros que são distribuídos para os sócios. A coisa é tão surreal que os acionistas são isentos, mas os trabalhadores, quando têm participação no lucro dessas empresas, são tributados em 27,5% do Imposto de Renda. A mesma fonte, se distribuída para os acionistas é isenta, mas para trabalhadores é paga. Que mecanismo perverso é esse? Pari passu a isso, temos que ter uma tabela progressiva de Imposto de Renda, aí sim aumentando essa isenção para a classe que menos ganha. Não me parece razoável que acima de dois salários mínimos já esteja sujeito ao Imposto de Renda. É preciso aumentar essa faixa de isenção. Só trabalhador paga Imposto de Renda nesse país. Os demais conseguem mecanismos para burlar. Às vezes, nem burlando, a lei permite (não pagar).

Via Correio Brasiliense