Por – advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

Em 2021 o Supremo Tribunal Federal fixou tese, em repercussão geral, segundo a qual “o fato gerador do Imposto sobre Transmissão inter vivos de Bens Imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.

Após essa decisão estabeleceu-se um debate acerca das diversas leis que davam base ao recolhimento antecipado do imposto, estabelecendo esse recolhimento como condição para o registro da transação, com a transferência da propriedade, uma clara arbitrariedade, por contrariar toda a base de incidência tributária. Ora, pelo sistema tributário vigente, a obrigação tributária principal somente surge com a concretização   do fato gerador; não se exige o pagamento de um tributo sobre um fato gerador futuro, presumido, ressalvada a hipótese expressamente prevista em norma tributária constitucional [1], norma direcionada para viabilizar a operacionalidade do regime de substituição tributária do ICMS.

Mais audaciosa ainda é a postura da Fazenda Municipal em estabelecer como condição da lavratura da escritura ou do registro, o pagamento antecipado do imposto. A estranheza do pagamento antecipado fica mais evidente se transportarmos essa exigência para outro imposto. Tomando como exemplo o ICMS, imagina-se uma situação em que se exigisse o pagamento do ICMS antes da efetuação da venda da mercadoria, condicionando ainda a realização da transação mercantil à comprovação do recolhimento do imposto. Isso seria algo impensável e serve para demonstrar que o pagamento do imposto deve ser evento posterior à concretização do respectivo fato gerador.

Conforme noticiado pela ConJur [2], o STF decide reanalisar esta tese diante do problema agora reconhecido, de que o processo que gerou a tese tratava apenas de uma das três hipóteses de incidência desse imposto, que seria a cessão de direito à sua sucessão, enquanto que a jurisprudência que o Tribunal teria resolvida reafirmar, tratava de outras hipóteses citadas na mencionada notícia.

A retomada dessa discussão pelo STF oportuniza colocar em foco a inconsistência da redação da tese com foco na materialidade de incidência delimitada pela Constituição Federal para aquele imposto municipal, que tem uma amplitude maior do que sugerido pela decisão do STF. Pretende-se, neste artigo, pontuar esta questão, sem aprofundar o debate dos motivos alegados para a reanálise da tese.

Voltando à tese enfocada, o fato gerador do ITBI somente ocorreria na efetiva transferência da propriedade imobiliária mediante o registro próprio. Ou seja, uma leitura literal permite concluir que a decisão teria restringido o fato gerador deste imposto à transferência de propriedade do bem imóvel. É claro que, contextualizando a tese, veremos que se pretendia impedir a cobrança do imposto de forma antecipada, como condição para a realização do negócio, mas a sua redação não explicita essa circunstância.

Segundo a Constituição, o ITBI incide sobre a transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição” (artigo 156, II).

Como o direito tributário é de sobreposição, há de se preservar os conceitos jurídicos dos demais ramos do direito, inclusive do direito privado. Busca-se então o conceito de direitos reais sobre imóveis no Código Civil, o qual em seu artigo 1.225 descreve uma lista das diversas formas em que esse direito se manifesta, tais como propriedade, servidão, usufruto e o que interessa para a nossa análise, o direito do promitente comprador do imóvel.  Mas como o direito deve ser interpretado de forma contextualizada, há de se considerar a norma do artigo 1.417, também do Código Civil, que estabelece as condições da formalização do direito real no evento do promitente comprador.

“Artigo 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel”.

Portanto, a simples promessa de compra e venda de imóvel, pactuada em instrumento adequado, atendidas a condições do artigo supratranscrito, em especial, a condição do registro, transfere ao promitente comprador o direito real sobre o imóvel objeto da transação, fato que atrai a incidência do ITBI, segundo a materialidade de incidência prevista na Constituição Federal, que menciona expressamente a incidência do imposto sobre a transmissão de direitos reais sobre imóveis. Ou seja, a transmissão de direitos reais sobre imóveis, entre os quais a transmissão do direito ao promitente comprador, constitui-se em fato gerador do imposto municipal; não se restringe essa materialidade de incidência à transferência da propriedade imobiliária, conforme sugere a redação da tese em debate. Além desse direito real, teríamos ainda a cessão de direitos à aquisição de imóveis, também prevista na Constituição como fato gerador do imposto.

Caso o objeto da discussão esteja relacionado à definição do aspecto temporal da exigência do imposto em relação à ocorrência do fato gerador, coibindo a cobrança antecipada como condição à lavratura da escritura ou do registro da transação, o enunciado da tese deverá expressar com clareza este fato, abandonando qualquer redação que possa sugerir limitações na materialidade de incidência fixada pelo constituinte.

Com este texto resumido, o que se espera que o STF aproveite a oportunidade de reanálise de sua decisão para produzir uma redação mais elaborada para a sua tese, deixando bem determinada a matéria julgada, sem interferir na materialidade de incidência do imposto.

[1] Artigo 150 (…) § “7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

[2] https://www.conjur.com.br/2022-ago-29/stf-rever-tese-fato-gerador-itbi-cessao-direitos

 

Via Conjur