As dificuldades de compreensão do conteúdo do tipo penal em análise

O entendimento dos crimes contra a ordem tributária é condicionado pela compreensão de institutos de dois âmbitos do Direito (o Penal e o Tributário), assim como suas relações e limites.

Essa complexidade implica várias dificuldades, e uma dessas questões é a interpretação do conteúdo e alcance do tipo do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, que define o não recolhimento de tributos indiretos ou devidos por agentes de retenção nos seguintes termos: “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.1

Trata-se da tipificação penal da conduta de não recolhimento de tributos indiretos (IPI e ICMS) ou devidos por agentes de retenção (Contribuição Previdenciária do empregado e IRPF descontado na fonte).

O sujeito passivo do IPI e do ICMS é o contribuinte que “cobra” no preço da operação o “valor” correspondente ao imposto do comprador (ou tomador de serviço), e o sujeito passivo da Contribuição Previdenciária e do IRPF retido na fonte é o responsável tributário que “desconta” do pagamento efetuado o “valor” correspondente ao tributo.

Portanto, o tipo não abrange o não recolhimento de qualquer tributo, mas somente aquele cujo “valor” é “descontado” ou “cobrado”, e por este motivo não alcança outras modalidades, como é o caso, por exemplo, do IPVA, do IPTU e do IRPF não descontado na fonte.2

Além disso, a hipótese não corresponde à modalidade delitiva denominada como “sonegação fiscal”, consistente na evasão tributária implementada mediante fraude e tipificada no art. 1º da Lei nº 8.137/90, pois o tipo não alude a qualquer forma fraudulenta de conduta realizada para o não recolhimento do tributo.3

Não obstante estes limites do tipo sejam de fácil percepção, existem outros aspectos extremamente polêmicos, decorrentes das relações entre o Direito Tributário, que define o objeto regulamentado, e o Direito Penal, que estabelece a regulamentação da hipótese fática que tem o tributo por objeto.

Algumas questões polêmicas decorrem do entendimento das diferenças das condutas consistentes em “descontar” e “cobrar”, e outras da compreensão da natureza do objeto “descontado” ou “cobrado”, consistente no “valor” que expressa a dimensão econômica do tributo a ser posteriormente recolhido.

O primeiro aspecto a ser esclarecido é o objeto material, ou seja, a “coisa” sobre a qual recai a conduta do sujeito, no ato do “desconto” ou da “cobrança”.

A obrigação tributária é estabelecida pela lei, que define os sujeitos ativo (Fisco) e passivo (contribuinte ou responsável tributário), assim como o objeto da prestação (tributo). Portanto, somente o sujeito ativo da obrigação tributária pode cobrar tributo. Por este motivo, o tipo do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 especifica que o que é “descontado” ou “cobrado”, não é o tributo, mas sim o “valor” relativo àquele instituto jurídico, ou seja, sua expressão econômica ou dimensão monetária.

Esta diferença é evidenciada pela diferença terminológica do conteúdo do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, em relação ao art. 1º da mesma lei, que contém a expressão “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social” sem qualquer ressalva que especifique algum aspecto diferencial do objeto. Portanto, o objeto sobre o qual recai a conduta do art. 1º (“tributo”) não se confunde com o objeto material do art. 2º, II (“valor” de tributo).

De fato, a lei penal sequer poderia tipificar uma conduta do sujeito passivo da obrigação tributária (seja ele contribuinte ou responsável tributário) que correspondesse ao ato de cobrar tributo, pois somente o sujeito ativo da obrigação tributária pode realizar tal atuação.

A compreensão dessa relação deve ser realizada a partir da perspectiva do sujeito passivo da obrigação tributária, que é quem efetivamente tem a obrigação de cumprir a prestação tributária, e não do sujeito de quem o valor é “descontado” ou “cobrado”.

A análise da questão a partir do enfoque da pessoa de quem o valor é “descontado” ou “cobrado” não tem qualquer fundamento técnico porque, embora o responsável tributário “”desconte” ou “cobre” o “valor” do contribuinte (nos casos de Contribuição Previdenciária, IRPF retido na fonte e ICMS em substituição tributária), e o contribuinte “cobre” tal “valor” de terceiro (nos casos de IPI e ICMS sobre operações próprias), as pessoas de quem os “valores” são “descontados” ou “cobrados” não necessariamente são sujeitos passivos da obrigação tributária.

Portanto, não importa de quem o “valor” do tributo foi “descontado” ou “cobrado”, mas sim quem “descontou” ou “cobrou”.

O segundo aspecto que merece uma consideração específica é a diferenciação entre os sujeitos que realizam as condutas de “descontar” e “cobrar”, e como são realizadas tais atividades.

Quem “desconta” o “valor” de tributo é o responsável tributário que, ao entregar um determinado valor ao contribuinte (no caso, pagar o salário ou outra remuneração), tem o dever legal de reter uma parcela do pagamento devido à existência de uma obrigação tributária acessória. Esta obrigação incide sobre tais pagamentos nos casos da Contribuição Previdenciária devida pelo empregado e do IRPF retido na fonte, por exemplo. O contribuinte de ambos estes tributos é o empregado (ou a pessoa remunerada), mas o sujeito passivo da direto obrigação tributária não é este contribuinte, e sim a fonte pagadora, que é definida em lei como o responsável tributário correspondente.4

Dessa forma, o “desconto” sempre é realizado sobre uma parcela de um valor pago pelo próprio sujeito passivo da obrigação tributária.

A “cobrança” tem uma configuração distinta, pois neste caso o sujeito passivo da obrigação tributária recebe o valor “cobrado” (em vez de descontá-lo de um pagamento por ele realizado).

O contribuinte “cobra” o “valor” correspondente ao tributo no preço da operação, e realiza uma ressalva contábil formal (destaque) que indica a dimensão econômica correspondente. Esta “cobrança” ocorre em relação ao “valor” do ICMS sobre operações próprias e do IPI, por exemplo. Nestes casos, o sujeito passivo da obrigação tributária é o contribuinte.

Porém, além dessas duas hipóteses, em que o “desconto” é realizado pelo responsável tributário por ocasião de um pagamento, e a “cobrança” é realizada pelo contribuinte no preço recebido, existe uma situação específica em que o sujeito passivo da obrigação tributária é o responsável tributário, mas não realiza o “desconto” do “valor”, e sim sua “cobrança”.

Trata-se do caso do ICMS devido na forma de substituição tributária. O substituto é o sujeito passivo da obrigação tributária na modalidade de responsável tributário, mas o “valor” correspondente ao ICMS não é “descontado” de qualquer pagamento feito por ele, e sim “cobrado” no preço pago pelo substituído que, embora seja o contribuinte do imposto, não é o sujeito passivo direto da obrigação tributária.

Por este motivo, não se pode realizar uma associação direta entre o ato de “descontar” e a qualidade de substituto tributário, pois o que vai determinar a forma da conduta realizada (“desconto” ou “cobrança”) é o fato de o sujeito passivo da obrigação tributária pagar ou receber o valor correspondente, e não sua modalidade de sujeição passiva.

Portanto, não há qualquer diferença na forma da conduta típica (“cobrar”) realizada pelo sujeito passivo da obrigação tributária do ICMS, seja ele devido sobre operações próprias ou na condição de substituto tributário.

De fato, quando o vendedor “cobra” o preço no qual está incluído, tanto o “valor” do ICMS incidente sobre operações próprias, quanto o “valor” do ICMS devido por substituição tributária, a conduta é única e exatamente a mesma. Os “valores” são “cobrados” conjuntamente, e a obrigação de recolhimento independe do fato de o comprador ser consumidor final ou contribuinte de ICMS substituído.

Também não é relevante o fato de o sujeito passivo da obrigação tributária ser classificado como contribuinte ou responsável tributário, pois o que define o sujeito ativo do delito é a conduta típica realizada, independentemente da classificação do sujeito passivo da obrigação tributária.

A conduta “descontar” ou “cobrar” é determinada pela forma de atuação do sujeito ativo do delito (pagamento ou recebimento do “valor”), e não pela espécie de sujeito passivo da obrigação tributária. Por este motivo, o sujeito passivo do ICMS “cobra” o “valor” correspondente ao tributo no preço recebido do comprador, independentemente de o tributo ser devido sobre a própria operação ou incidente na forma de substituição tributária, pois este aspecto não altera a configuração penal do fato típico.

A compreensão dessa complexidade é indispensável para a definição do conteúdo do tipo do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90.

Existe uma considerável polêmica na teoria jurídica e jurisprudência, devido ao fato de essa relação ser considerada mediante a perspectiva das características do sujeito de quem o “valor” é “descontado” ou “cobrado”, e não a partir do enfoque do sujeito passivo da obrigação tributária (que é quem realiza a conduta típica).

Como o responsável tributário “desconta” ou “cobra” o “valor” do contribuinte (nos casos de Contribuição Previdenciária, IRPF retido na fonte e ICMS em substituição tributária), alguns autores elaboraram o entendimento de que nas hipóteses em que tal “valor” seja “cobrado” do consumidor final (nos casos de IPI e ICMS sobre operações próprias), o fato não seria típico porque este não integra a relação jurídica tributária, motivo pelo qual o “valor cobrado” não corresponderia ao tributo.5

Porém, esta proposição adota uma premissa incorreta, e é elaborada a partir de uma perspectiva inadequada de análise da hipótese típica.

A premissa adotada é a consideração de que o que é “descontado” ou “cobrado” seja o tributo, e não o “valor” que representa sua dimensão econômica.

Este aspecto já foi analisado por ocasião do esclarecimento de que o sujeito que realiza a conduta de “desconto” ou “cobrança” do “valor” correspondente ao tributo não realiza atividade de natureza arrecadatória, pois não é sujeito ativo da obrigação tributária. Por este motivo, o “valor descontado” ou “cobrado” não pode ser juridicamente classificado como tributo.

Consequentemente, o fato de o “valor” ser “descontado” ou “cobrado” de alguém classificado pela legislação tributária como contribuinte ou não, é completamente irrelevante para a classificação jurídica do “valor descontado” ou “cobrado”. Quem tem que recolher o tributo respectivo é o sujeito passivo da obrigação tributária, que no caso do ICMS devido por substituição tributária é, em princípio (salvo situações específicas), o responsável tributário, e não o contribuinte.

Por este motivo, nesta configuração do fato, e que corresponde à hipótese descrita no tipo penal, a situação do contribuinte substituído não é diferente da de qualquer terceiro alheio à obrigação tributária no caso específico (como é o caso do consumidor final nas demais operações em que incide o ICMS).

O segundo problema dessa proposição é a inclusão da pessoa de quem tal “valor” é “descontado” ou “cobrado” na relação jurídica tributária que serve de substrato para a conduta típica realizada pelo sujeito no âmbito penal.

Devido a esta inclusão, a relação é analisada a partir da perspectiva do sujeito de quem o “valor” é “descontado” ou “cobrado”, e não da perspectiva do sujeito passivo da obrigação tributária, que é quem realiza a conduta típica.

Como o responsável tributário “desconta” ou “cobra” o “valor” do contribuinte nos casos de Contribuição Previdenciária, IRPF retido na fonte e ICMS em substituição tributária, e o contribuinte “cobra” o “valor” do consumidor final nos casos de IPI e ICMS sobre operações próprias, considera-se que o responsável tributário estaria deixando de recolher o tributo devido pelo contribuinte (na primeira hipótese), e o contribuinte estaria deixando de recolher tributo devido em nome próprio (na segunda hipótese).6

Porém, esta conclusão parte de uma premissa falsa, que é a consideração que o tributo seria devido pelo contribuinte, nos casos em que o sujeito passivo da obrigação tributária seja o responsável tributário.

Quem define a sujeição passiva é a lei, e no caso de responsabilidade tributária o contribuinte não é sujeito passivo da obrigação. Por este motivo, não há qualquer motivo para considerar uma suposta relação jurídico-tributária entre este contribuinte e o sujeito ativo da obrigação tributária.

O sujeito passivo desta obrigação jurídica é o responsável tributário e não o contribuinte, motivo pelo qual, para a classificação jurídico-penal da conduta típica, não é relevante a classificação do sujeito de quem o “valor” do tributo seja “descontado” ou “cobrado”, mas somente a identificação de quem tenha o dever de realizar esse “desconto” ou “cobrança”, e posterior recolhimento do tributo.

O fato de o “valor” ser “descontado” ou “cobrado” do contribuinte ou do consumidor final não altera a configuração típica da conduta, pois a lei penal somente define o comportamento do sujeito passivo da obrigação tributária, independentemente das características da pessoa de quem o “valor” do tributo foi “descontado” ou “cobrado”.

A análise da hipótese definida no tipo penal a partir da perspectiva de quem realiza a conduta típica soluciona este problema, pois embora o objeto regulamentado seja uma categoria do Direito Tributário, a norma em análise tem conteúdo penal, que configura um instituto complexo, porém autônomo.

As dificuldades de compreensão do conteúdo do tipo penal em análise decorrem da complexidade do tema, pois a hipótese típica não corresponde simplesmente ao conteúdo da norma tributária, mas a precisa definição das categorias tributárias é indispensável para a especificação do fato típico penal.

Para isso deve ser considerado que, embora o objeto regulamentado seja formado por categorias de Direito Tributário, a lei penal define uma hipótese fática distinta e autônoma, com características próprias que distinguem o Direito Penal Tributário do Direito Tributário Penal.

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1 O conteúdo deste dispositivo foi parcialmente substituído pela Lei nº 9.983/2000, que acrescentou o art 186-A ao Código Penal e tipificou o não recolhimento das contribuições previdenciárias.

2 EISELE, Andreas. Apropriação indébita e ilícito penal tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 87/92.

3 EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 23DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 98/99-334.

4 NAVARRO COÊLHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 516.

5 STJ – RHC 36.162/SC – Rel. Nefi Cordeiro, j. 26/8/2014; STJ – RE 1.543.485/GO– Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 5/4/2016; STJ – RHC 77.031/SC – Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 6/12/2016; STJ – HC 168.785/SP – Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 6/12/2016; STJ – AgRe-RE 1.632.556/SC – Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 7/3/2017. HARADA, Kiyoshi; MUSUMECCI FILHO, Leonardo; POLIDO, Gustavo Moreno. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 250; CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 694/698; ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito Penal Tributário. São Paulo: Atlas, 1995, p. 112/114.

6STJ – AgRg-RE 1.465.259/GO – Rel. Sebastião Reis Júnior, j. 8/9/2015. RODRIGUES RIBAS, Lídia Maria Lopes. Questões relevantes de Direito Penal Tributário. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 85/86; FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 61/65; MONTEIRO, Samuel. Crimes fiscais e abuso de autoridade. São Paulo: Hemus, 1993, p. 178/179; SCHOERPF, Patrícia. Crimes contra a ordem tributária. Curitiba: Juruá, 2004, p. 176-181; PAULINO, José Alves. Crimes contra a ordem tributária. Brasília Jurídica: Brasília, 1999, p. 67/68.

por ANDREAS EISELE – Doutor em Direito. Promotor de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Via Jota Info