CF nunca ventilou a possibilidade de o Fisco exigir o ICMS-ST recolhido a menor com base em fato gerador presumido

Para melhor compreensão do que propomos analisar no presente artigo, é importante mostrar um exemplo de aplicação das regras de substituição tributária (ST) do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias (ICMS). Indústria vende mercadoria por 100 para distribuidor no mesmo estado, que revende o mesmo produto por 150 para varejista.  Varejista revende por 250 a consumidor final. Em um regime normal de apuração, o ICMS é calculado da seguinte forma:

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Agora, num regime de ST podem ocorrer duas possibilidades: os contribuintes recolhem mais ou menos ICMS do que no regime normal, pois a margem de presunção do imposto pode ser maior ou menor do que a real operação. Com base nos mesmos dados acima, façamos o exemplo em que o industrial é o substituto, recolhendo o ICMS próprio e o de os demais integrantes da cadeia produtiva (ST progressiva ou “para frente”). No primeiro exemplo, a Margem de Valor Agregado (MVA) é de 70%, e no segundo, 130%:

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No caso acima, como a lucratividade da operação real foi maior (116,6%), o ICMS-ST foi menor (70% MVA – 44 contra 50). Em outro exemplo:

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Como a lucratividade da operação real foi menor (116,6%), o ICMS total foi maior na ST (130% MVA – 56 contra 50). Assim, o ICMS-ST pode ser menor (44) que o apurado pelo regime normal (50), ou maior (56), a depender das margens de presunção e das margens de lucro na cadeia de operação.

Com base nos três cenários, questiona-se: numa hipótese em que o contribuinte pudesse restituir o que pagou a maior e o fisco pudesse cobrar a diferença (complementação) do ST calculado a menor, faria qualquer sentido a instituição de uma sistemática de substituição tributária? É evidente que não!

A Constituição Federal (CF) determina, em seu art. 150, § 7º, que “a lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

Pela leitura deste dispositivo, verifica-se que a CF permite a restituição do que o contribuinte pagou a maior.  Porém, nunca ventilou a possibilidade de o Fisco exigir o ICMS-ST recolhido a menor com base nesse fato gerador presumido.

É importante ressaltar que somente lei complementar pode regulamentar hipóteses de ST (art. 150, § 2º, XII, “c”).  Não é à toa, a alteração da sujeição passiva tributária é norma geral de direito tributário e necessita de quórum qualificado para sua aprovação. Pela necessidade de observância de lei complementar em matéria de ICMS, temos recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) com repercussão geral reconhecida, por exemplo, Temas nº 456, 1.093 nº e 1.094.[1]

E como a Lei Complementar nº 87/96 regulamenta a restituição ou cobrança de ICMS ST recolhido a menor ou maior do que o fato gerador? Da mesma forma que previsto na CF, ou seja, permitindo somente a restituição, porém nada dizendo sobre cobrança de complementação caso o fato gerador presumido seja menor que o real. O art. 10 da LC nº 87/96 prevê que “é assegurado ao contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar”.

Ou seja, o comando aplica-se, exclusivamente, ao contribuinte, e não ao Fisco. E o que seria o fato gerador presumido que não se realizou? Tratam-se de vendas canceladas/devoluções ou de ICMS-ST maior que o ICMS regular da operação?

Trata-se de longa história de discussão judicial no STF sobre o tema. Houve uma alteração de entendimento do Tribunal e para acompanhar a sua evolução podemos traçar a seguinte linha do tempo:

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Numa brevíssima síntese, toda a legislação e a jurisprudência do STF até o presente momento analisou o direito de o contribuinte restituir o ICMS-ST quando a base de cálculo presumida for superior à base de cálculo real. Nunca analisou de forma direta o dever de o contribuinte complementar o imposto.

Analisando os três precedentes de 2016, o STF reconheceu, com efeitos vinculantes, que (i) o ICMS pago a maior na sistemática da substituição tributária pode ser objeto de restituição; (ii) o princípio da praticidade não deve prevalecer sobre garantias e princípios constitucionais do contribuinte; e (iii) o artigo 150, § 7º, da Constituição Federal assegura a restituição em todos os casos em que o fato gerador não se realize, em especial no caso em que o fato gerador real é menor que o presumido.  O fisco opôs embargos de declaração para que o STF reformasse a decisão, a fim de contemplar a possibilidade de cobrança da complementação do ST, mas os embargos foram rejeitados, pois “se trata de inovação processual posterior ao julgamento, não requerida ou aventada no curso do processo”.

Apesar disso, diversos estados passaram a exigir a complementação do ICMS-ST quando o fato gerador presumido for menor que o da operação real. A justificativa dessa exigência após o julgamento do RE n° 593.849 possui forte carga principiológica, já que se pauta na aplicação da vedação ao enriquecimento sem causa, do próprio princípio da não cumulatividade, da isonomia/equidade e com base na alegação que o RE nº 593.849 teria autorizado de forma expressa e vinculante essa possibilidade (o que não é verídico).

No entanto, entendemos que não haveria que se falar em isonomia entre contribuinte e fisco, pois enquanto o contribuinte deve, obrigatoriamente, se curvar às prescrições normativas, recolhendo o ICMS-ST, absolutamente nada impede o Estado de revogar as mesmas regras se elas não mais lhe servirem, com consequente exigência do ICMS pelo regime normal de apuração. Em outras palavras, enquanto o regime de ICMS-ST for um benefício opcional do legislador estadual e uma obrigatoriedade para o contribuinte, não haveria que se falar em isonomia ou em paridade de armas entre as partes. Em resumo, o fisco não tem o direito de exigir ICMS ST. Isso esvaziaria a lógica do sistema, trazendo mais insegurança jurídica para as relações que permeiam o imposto.

Da mesma forma, os Regimes Optativos de Tributação (ROT) criados na forma do Convênio ICMS nº 67/19 são inconstitucionais, pois os estados não podem, em hipótese alguma, exigir complementação de ICMS, nem vedar a restituição do que foi pago a maior a título de ICMS-ST.

E isso significa que o ICMS-ST deve ser extinto? Não necessariamente, pois muitas vezes a sistemática pode ser vantajosa tanto para o fisco quanto para o contribuinte. No entanto, deve-se assegurar que contribuinte somente recolha o menor valor entre (i) o ICMS com base na operação normal; e (ii) o ICMS calculado com base na ST. É fundamental que o percentual de presunção não se divorcie muito da realidade, e que o processo de restituição do ICMS-ST recolhido a maior seja célere, observando-se o disposto no art. 10, §§ 1ºe 2º da LC nº 87/96 (apropriação automática na escrita fiscal em 90 dias, na ausência de decisão do fisco), sem exigência de taxas ou de maiores formalidades para processamento do pedido de restituição.

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[1] Na ordem, 456: “A antecipação, sem substituição tributária, do pagamento do ICMS para momento anterior à ocorrência do fato gerador necessita de lei em sentido estrito. A substituição tributária progressiva do ICMS reclama previsão em lei complementar federal“; 1.093: “A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais”; 1094: “I – Após a Emenda Constitucional 33/2001, é constitucional a incidência de ICMS sobre operações de importação efetuadas por pessoa, física ou jurídica, que não se dedica habitualmente ao comércio ou à prestação de serviços, devendo tal tributação estar prevista em lei complementar federal. II – As leis estaduais editadas após a EC 33/2001 e antes da entrada em vigor da Lei Complementar 114/2002, com o propósito de impor o ICMS sobre a referida operação, são válidas, mas produzem efeitos somente a partir da vigência da LC 114/2002”;

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MAURÍCIO PEREIRA FARO – Mestre Gama Filho, Professor PUC/RJ e FGV/RJ e Advogado.
MATHEUS BERTHOLO PICONEZ – Advogado no Barbosa, Müssnich e Aragão Advogados. Professor no IBMEC-RJ. LL.M. em direito tributário internacional pela Levin College of Law – University of Florida.

Via Jota Info