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Permissão para estados criarem contribuição fere pilares do projeto

A brecha aberta de última hora na Reforma Tributária, aprovada na Câmara na semana passada, para que governadores criem um tributo sobre produtos primários e semielaborados, poderá se estender a, pelo menos, 17 estados. A abrangência de uma nova cobrança, prevista no Artigo 20 do projeto, preocupa setores como agronegócio, a mineração e a indústria petrolífera.

Tributaristas criticaram a medida, afirmando que ela vai de encontro a princípios basilares da reforma que é a simplificação do sistema tributário. A mudança do local de cobrança para o destino, ou seja, sobre o consumo, e não sobre a produção, e o fim do imposto em cascata, já que a contribuição não gera crédito tributário.

A possibilidade de criar mais um imposto foi incluído na Reforma Tributária momentos antes da votação, na madrugada de quinta para sexta-feira. A contribuição teria que ser usada especificamente para financiar obras de infraestrutura e habitação.

Para o advogado tributarista Luiz Gustavo Bichara, do escritório Bichara Advogados, a alteração de última hora na proposta de emenda à Constituição é abrangente.

Qualquer estado que tenha fundos associados à cobrança de benefícios fiscais estaria apto a criar a contribuição.

— Se esse entendimento prevalecer, o rol de estados que poderá vir a instituir a nova contribuição aumentará bastante — disse o tributarista Gustavo Brigagão, sócio do Brigagão, Duque Estrada Advogados.

O governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, afirmou ter trabalhado pela medida, ressaltando que o estado já têm fundo instituído:

— É essencial que os estados que já têm essa contribuição e têm sua economia voltada à produção primária e para exportação possam ter recurso para fazer investimentos necessários.

Ronaldo Caiado, governador de Goiás, disse que foi informado pelo governador Mauro Mendes, a respeito da articulação para manutenção dos fundos por meio de emenda ao texto da Reforma e se manifestou de forma favorável, mas não se envolveu pessoalmente na articulação.

Questionados no Supremo

Os fundos estaduais, a maioria criada como reação à crise fiscal agravada na recessão de 2015 e 2016, estão espalhados. A lista de 17 estados, incluindo o Rio, consta de uma apresentação da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Especialistas e tributaristas entendem que, apesar de alguma falta de clareza no artigo, ele se aplicaria a todos esses estados. A CNI em nota afirmou que “alguns dos fundos estaduais” tiveram a constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), por causa “da incidência sobre exportações, o que tornou o produto nacional menos competitivo”. A apresentação da CNI mapeia sete ações no STF.

Senadores, porém, não simpatizam com a ideia, e o artigo já aparece na lista de possíveis supressões do texto que devem ser feitas pelos parlamentares.

— É possível ter supressões ao texto, como essa —disse Alessandro Vieira (MDB-SE).

A retirada de trechos da Reforma Tributária não obriga que a proposta retorne à Câmara.

A senadora Margareth Buzetti (PSD-MT) tem um entendimento diferente e defende a medida. Ela diz que o Artigo 20 não trata da criação de impostos:

—Ele permite aos estados que já tenham instituído fundos até 30 de abril de 2023 que prorroguem sua validade até 2043. É um período de transição para que, no futuro, esses fundos sejam extintos.

No caso de Mato Grosso, o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), a contribuição paga pelos produtores representou uma arrecadação de mais de R$ 2,5 bilhões em 2022, diz a senadora.

Mas na visão de André Menon, sócio da área tributária do Machado Meyer Advogados, a nova cobrança é passível de discussão quanto à sua constitucionalidade, já que a criação de contribuições é de competência exclusiva da União.

— A manutenção destas contribuições contraria o princípio básico da Reforma Tributária proposta pela PEC 45, que é a de simplificação tributária — diz.

Entidades reclamam

O Ibram, instituto que representa as mineradoras, considerou “desastrosa” a possibilidade de criação do tributo. O IBP, que representa as empresas do setor de petróleo e gás, também criticou a medida. Para o Ibram, o artigo “contraria a própria reforma e aumenta a carga tributária”.

A Aprosoja Brasil, associação dos produtores de soja, chamou a atenção para uma série de incertezas técnicas sobre a nova cobrança. O artigo “ressuscita a discussão” sobre o que é “produto primário” e “semielaborado”, o que pode levar a disputas judiciais. “A medida afeta toda a cadeia da soja (grão, farelo e óleo) e igualmente do milho, e gerará uma elevação de custos de produção, com prejuízos que impactarão no PIB”, diz a Aprosoja, em nota.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad afirmou, ao participar do podcast ‘O Assunto’, da jornalista Natuza Nery, da Globonews na manhã de ontem, que a segunda fase da Reforma Tributária, com foco na renda, será encaminhada ao Congresso antes da tramitação final do primeiro texto da reforma, centralizado no consumo:

— Nós não vamos aguardar o fim da tramitação (do texto da Reforma), para mandar para o Congresso a segunda fase da Reforma Tributária. Porque ela tem que ir junto com o Orçamento.

Mecanismo para vencer crise fiscal
  • A maioria dos fundos estaduais a que se refere a Reforma Tributária surgiu durante a crise fiscal dos estados. Com a recessão de 2014 a 2016, a arrecadação tombou, e os estados buscaram aumentar a arrecadação. Os benefícios fiscais foram o alvo preferencial.
  • Uma das formas de reduzir os benefícios foi constituir esses fundos estaduais — vários têm no nome “de equilíbrio fiscal”. Os governos definiram que o contribuinte tinha de destinar ao fundo parte dos tributos que deixou de pagar. Na prática, funcionou como uma elevação do tributo.
  • Boa parte foi validada pelo Confaz, conselho formado por secretarias estaduais e Ministério da Fazenda.

Fonte: O Globo – Via Fenafisco