É habitual, entre nós, achar que todas as soluções passam por grandes reformas. Elas têm sempre o caráter de urgência e, por isso, não podem ser amadurecidas. São obra de sábios e, por isso, além de incontestáveis, inexoráveis. Mesmo assim, nunca saem de moda as reformas previdenciária, trabalhista, tributária. Vamos concentrar-nos na primeira, que, na visão do establishment técnico e político, se não aprovada, nos termos propostos, tornaria o país (mais uma vez) inviável.

Segundo os áulicos, há um deficit incontornável. Escolheu-se a conta da Previdência, ardilosamente destacada da Seguridade Social, que englobou, na Constituição de 88, também saúde e assistência. E, numa dessas mágicas tupiniquins, se convencionou que a Previdência só poderia ser financiada pela contribuição sobre as remunerações do trabalho, ignorando a definição pela qual a seguridade será financiada com recursos dos orçamentos públicos (como em todo o mundo) e dos trabalhadores e das empresas, incluindo também receita/faturamento, lucro, importação de bens e serviços do exterior e concursos de prognósticos.

A questão primordial, portanto, é reconceituar o universo das políticas sociais do Estado e definir que tipo de cálculo é apropriado para determinar o que é superavit ou deficit, além de avaliar, no último caso, se ele é de caixa ou atuarial (numa perspectiva de longo prazo). E, inclusive, determinar se (só) a previdência tem que ser superavitária.

Sabemos todos que o perfil etário da população está em constante mutação e que as condições da produtividade e da economia são dinâmicas. Mas não será lícito supor que reformas dessa natureza e magnitude devem ser contínuas e graduais, na dimensão de nosso tempo e nossas expectativas? (A fórmula 85/95 progressiva nos atende parcialmente.). Transições abruptas e radicais se amoldam às revoluções ou ditaduras.

Mesmo desconsiderando os números atuais da economia, com desemprego recorde, queda acentuada da renda do trabalho e precarização crescente das relações de trabalho (e sua consequente informalização), minando as bases da arrecadação, vamos refletir sobre alguns dados (oficiais), para uma avaliação honesta da realidade.

O projeto de lei orçamentária de 2017 estimou uma renúncia de receita, somente sobre a folha, de R$ 62,5 bilhões. Acrescentando as renúncias da Cofins, da CSLL e do PIS/Pasep, chegaríamos à inacreditável cifra de R$ 151 bilhões. (E não estamos falando nos regimes especiais e na chamada pejotização, que exclui um número crescente de contribuintes.) O desvio de recursos proveniente da DRU – hoje em 30% -, atinge em cheio as receitas da Seguridade, alcançando o expressivo somatório de R$ 61 bilhões.

A dívida ativa da União, segundo dados recentes da PGFN, foi estimada em R$ 1,8 trilhão (note-se: não é bilhão); só a previdenciária era da ordem de R$ 400 bilhões. Segundo o Departamento de Gestão da Dívida Ativa da União, tais valores envolvem sonegação fiscal, evasão de divisas, blindagem patrimonial); 63,7% da dívida correspondem a 12.859 devedores; os 500 maiores devedores da Previdência respondem por mais de um quarto dessa dívida.

A sonegação é calculada em cerca de um quarto da arrecadação (o INSS é um dos campeões), isso sem falar no que se perde com as prescrições, parcelamentos recorrentes a perder de vista, anistias, além do planejamento tributário). Fraudes de toda ordem são noticiadas semanalmente; o sistema é inoperante para pelo menos mitigá-las.

Os militares foram colocados de fora (e aqui não se discute o mérito da questão). No entanto, estranhamente, parece ignorar-se o fato de que, no orçamento de 2017, constam R$ 41 bilhões de despesas com reformas e pensões, quase 85% das despesas correspondentes com civis. O que vale para a receita não vale para a despesa?

Por fim, a previdência rural. Vamos deixar claro: nada mais justo que pagar esses benefícios. Entretanto, como até hoje a contribuição do setor é apenas simbólica, há um deficit de mais de R$ 100 bilhões nessa conta. Por que insistir em misturar despesas de natureza genuinamente previdenciária (contributiva) com as tipicamente assistenciais (há outras, aliás)? Ou seja: quando interessa, fica tudo junto; quando não interessa, separa-se a previdência da seguridade. A sociedade precisa saber que interesses representam alguns dos maiores defensores públicos da reforma proposta.

Por ROBERTO BOCACCIO PISCITELLI – Professor da Universidade de Brasília

 

Fonte: Correio Braziliense – Via Anfip