Impactos para as operações de comércio exterior são relevantes e trazem benefícios e dúvidas
A reforma tributária recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados trará uma mudança profunda no sistema tributário nacional, há muito discutida por diversos setores da economia. Entretanto, pouca atenção foi dada até o momento aos impactos dessa reforma para a tributação no comércio exterior, principalmente para os regimes aduaneiros especiais.
A PEC 45/2019 tem como um dos seus pilares a simplificação do sistema tributário, com a uniformização da tributação sobre o consumo entre os diversos setores da economia e uma substancial redução de benefícios fiscais.
Nesse sentido, o proposto art. 156-A, §1º, inciso X, relativo ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) – também aplicável à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), nos termos do art. 195, §15 – estabelece que esses tributos não serão objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas na própria Constituição.

No que tange ao comércio exterior, merece destaque o inciso IX do parágrafo 5º do mesmo artigo, que delega à Lei Complementar dispor sobre “as hipóteses de diferimento do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação”.
Sabiamente, a PEC reconheceu a particularidade das operações de comércio exterior, que, muitas vezes, exigem regimes próprios – em alguns casos, utilizados internacionalmente – com tributação diferenciada e outros benefícios fiscais. Entretanto, a redação adotada gera dúvidas sobre o alcance dessa exceção e, consequentemente, sobre os impactos da reforma para os regimes relacionados à importação e exportação existentes hoje no país.
A primeira dúvida refere-se à própria definição de “regimes aduaneiros especiais”.
A Constituição Federal sequer faz menção ao termo, à exceção do texto proposto pela PEC 45.
O Decreto-Lei 37/1966, que regulamenta o imposto de importação (não abrangido pela reforma) e os serviços aduaneiros, reserva seu Título III aos regimes aduaneiros especiais, mas não chega a definir o seu conceito. Das suas disposições gerais (art. 71), extrai-se apenas que se trata da suspensão do imposto de importação, concedida sob determinadas condições (a serem previstas em regulamento) e por prazo determinado de, em regra, até um ano.
Por sua vez, o Código Aduaneiro do Mercosul, aprovado pelo Decreto Legislativo 149/2018, mas ainda está pendente de ratificação por outros membros do bloco, define os regimes aduaneiros especiais como “regulações específicas, dentro de um regime aduaneiro, que permitem o ingresso, a circulação no território aduaneiro ou a saída dele de mercadorias, meios de transporte e unidades de carga, sem o pagamento ou com o pagamento parcial dos tributos aduaneiros e com sujeição a um despacho aduaneiro simplificado, em razão da qualidade do declarante, da natureza das mercadorias, da forma de envio ou do destino” (art. 100).
Mas cabe à legislação infraconstitucional definir a amplitude do termo e, consequentemente, o alcance da exceção prevista na PEC 45? E basta que um regime relacionado ao comércio exterior seja nomeado de regime aduaneiro especial para que se enquadre na exceção do art. 156-A, §5º, inciso IX?
A denominação adotada pela lei não altera a natureza de cada instituto jurídico, de modo que não adianta chamar de regime aduaneiro especial aquilo que não o seja. De igual modo, não se interpreta a Constituição a partir da legislação infraconstitucional, sob pena de violação à hierarquia das normas. É a Constituição que dará fundamento de validade à lei complementar do IBS e da CBS, e não o contrário.
Contudo, a questão ganha contornos complexos porque hoje não existe um conceito constitucional de regime aduaneiro especial. Na verdade, sequer há uma definição legal, de sorte que cabe ao operador do Direito construir esse sentido a partir de processo interpretativo, o que tende a gerar litigiosidade.
Eventual promulgação da PEC 45 introduzirá um conceito constitucional de regime aduaneiro especial que demandará a análise do contexto de sua criação para efeitos de delimitação do seu significado. Essa análise envolve, dentre outros aspectos, o exame da constância terminológica, o que dará certo espaço à interpretação da Constituição conforme a legislação infraconstitucional. Isso porque diversos termos e expressões utilizados no texto constitucional só podem ser adequadamente compreendidos se o intérprete analisar o sentido linguístico utilizado a nível infraconstitucional.
Neste ponto é que se torna fundamental o exame das legislações infraconstitucionais que hoje fazem uso da expressão regime aduaneiro especial.
Nesse contexto, há alguns regimes que indubitavelmente devem ser enquadrados como regimes aduaneiros especiais. São aqueles exemplos clássicos previstos tanto na legislação brasileira quanto na de outros países e em acordos internacionais. Entretanto, há outros casos que estão em uma zona mais cinzenta, seja por seu caráter setorial, seja por não serem denominados como regimes aduaneiros especiais na legislação.
Dentre os regimes clássicos, pode-se citar o trânsito aduaneiro e a admissão temporária. No primeiro, permite-se que um bem ingresse no país com a suspensão dos tributos para (i) passagem pelo território nacional e posterior exportação; ou (ii) para seu transporte, sob controle aduaneiro, para outro recinto alfandegado no território brasileiro (comumente um porto seco) para que lá seja submetido ao despacho aduaneiro de importação. Trata-se, portanto, de um regime estreitamente ligado ao direito de liberdade de trânsito dos bens e meios de transporte, previsto nas convenções internacionais, e à infraestrutura criada para o comércio exterior brasileiro, composta por portos, aeroportos, pontos de fronteira terrestres e por recintos localizados no interior do território nacional – os chamados portos secos ou centros logísticos industriais aduaneiros, criados justamente para desafogar o restante da estrutura.
A admissão temporária, por outro lado, permite que um bem ingresse no país, por prazo determinado, com suspensão total ou parcial dos tributos devidos na importação, para posterior exportação da mercadoria no mesmo estado ou após processamento. É um regime fundamental para exposições, competições e amostras internacionais culturais, esportivas, científicas, educacionais, comerciais ou industriais, entrada de veículos estrangeiros transportando mercadorias e passageiros, e até de contêineres, entre outros.
No grupo dos benefícios setoriais, há regimes aduaneiros especiais, assim denominados pela legislação brasileira, notadamente pelo Decreto-Lei 37/1966 e pelo Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro) que são particularidades nacionais e se destinam a atender setores específicos da economia. Pode-se citar o Repetro, destinado ao setor de petróleo e gás; o Repex, destinado à importação para posterior exportação de petróleo bruto e derivados; e o Reporto, destinado ao setor portuário – e com previsão de extinção no final de 2023.
Em relação aos benefícios na importação, mas não denominados de regimes aduaneiros especiais, há hipóteses de não incidência ou isenção de tributos que replicam o previsto para o imposto de importação. Citam-se aqui as hipóteses de não oneração de operações de reposição de mercadorias, amostras sem valor comercial, bagagem de viajantes residentes no país, comércio de subsistência de fronteiras, dentre outros.
Nessa categoria, também seria possível incluir o Regime de Tributação Simplificada (RTS) e o Regime de Tributação Especial (RTE), destinados, respectivamente, para remessas internacionais e bens adquiridos por viajantes no exterior, que preveem a cobrança de uma alíquota majorada do imposto de importação, com a isenção ou alíquota zero dos demais tributos devidos na importação (IPI e PIS/Cofins-Importação).
Por fim, temos os benefícios que permitem a aquisição de bens importados e nacionais com a desoneração de apenas parte dos tributos devidos na importação, vinculados à característica do produto, atividade econômica da empresa, finalidade do bem, etc. Por exemplo, aqueles relacionados a empresas preponderantemente exportadoras (p. ex. RECAP, REPES, art. 40 da Lei 10.865/04) e o regime especial de incentivos para desenvolvimento da infraestrutura (REIDI).
Todos eles envolvem benefícios na importação ou exportação de mercadorias, mas são mecanismos com características distintas e nomenclaturas diferentes na legislação infraconstitucional.
Diante dessa multiplicidade de regimes, o texto proposto pela PEC 45 traz poucas respostas – para não dizer completa insegurança – sobre a possibilidade de implementar ou manter os benefícios, regimes e tratamentos diferenciados hoje existentes para o comércio exterior, o que poderá implicar em novas discussões judiciais e, até mesmo, uma proliferação desses regimes, em especial aqueles que contemplam a aquisição de bens importados e nacionais, como forma de escapar à vedação à concessão de benefícios fiscais do art. 156-A, §1º, inciso X.
Superada a questão acima, surge um segundo problema. O texto da PEC fala apenas em diferimento do imposto (ou contribuição).
Trata-se de uma restrição problemática e desprendida da melhor técnica. Primeiro, porque a terminologia diferimento pode assumir o caráter de isenção, substituição tributária “para trás” ou mera postergação do recolhimento do tributo. Além disso, na imensa maioria dos regimes aduaneiros especiais, há o estabelecimento de hipóteses de suspensão, por vezes seguida de isenção (ou alíquota zero), quando cumpridas determinadas condições.
É imperativo que a redação utilizada na PEC 45 seja aprimorada para contemplar essa dinâmica própria dos regimes aduaneiros especiais. Tampouco basta substituir o termo diferimento por suspensão, conforme redação anterior da PEC, uma vez que, em regimes específicos, há aplicação imediata de isenção ou alíquota zero. Assim, necessário adotar uma redação mais abrangente, que contemple adequadamente os diversos regimes existentes, ou simplesmente suprimir a parte inicial do inciso X, de modo que a lei complementar disponha sobre os regimes aduaneiros especiais, não se lhes aplicando a vedação à concessão de benefícios fiscais prevista no art. 156-A, §1º, inciso X.
Por fim, destaca-se que a reforma também terá um efeito positivo sobre os regimes aduaneiros, decorrente da uniformização entre os tributos estaduais e federais, na forma do IBS e da CBS. Hoje, muitas vezes, a legislação estadual não reflete com exatidão as regras federais relativas aos regimes aduaneiros especiais e frequentemente limita ou sequer admite a utilização dos regimes, para fins de ICMS. Com a uniformização do fato gerador e hipóteses de isenção e imunidade da CBS e do IBS, a expectativa é que tais entraves sejam resolvidos, o que facilitará a utilização desses regimes pelos operadores brasileiros e reduzirá a litigiosidade.
Como se vê, os impactos da reforma tributária para as operações de comércio exterior são relevantes e trazem benefícios e dúvidas. Parte dessas questões poderão ser esclarecidas – e deverão ser abordadas – quando da edição da Lei Complementar, mas há pontos de atenção no próprio texto constitucional que merecem maior debate.
Via Jota