Devolução de tributos sobre o consumo entrou na pauta do Congresso Nacional
O cashback está na pauta do Congresso, no contexto da reforma tributária[1]. Trata-se de um mecanismo de devolução do tributo sobre o consumo para a população de baixa renda. Esse mecanismo não é uma novidade na experiência internacional, como se verifica no exame dos modelos praticados por Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Colômbia e Canadá acerca da devolução ou desoneração do tributo sobre o consumo para determinados contribuintes.
No Uruguai, não se trata propriamente de um modelo de restituição do IVA, e sim de um regime de desoneração no ato de consumo. Em 2012, o art. 9º da Lei uruguaia 18.910/2012 facultou ao Poder Executivo desonerar integralmente do IVA a população de baixa renda no momento da compra ou da tomada de serviços quando estiver utilizando um cartão de débito disponibilizado pelo Banco da Presidência Social do Uruguai (BPS Prestaciones)[2]. O Decreto 288/2012 criou efetivamente o regime e limitou a isenção para aquisições mensais de até 2.000 pesos uruguaios[3]. O sistema utilizado pelos estabelecimentos comerciais cadastrados já retira o IVA integralmente da fatura comercial no ato de consumo[4]. Esse programa não se aplica para produtos como bebidas alcoólicas, cigarros, jogos de azar, pornografia e produtos sujeitos a fraudes, segundo regulamentação das autoridades[5].
Em 2022, o regime uruguaio foi modificado passando-se a se chamar “IVA personalizado”, no qual os beneficiários de programas assistenciais podem receber seus benefícios em um aplicativo do governo federal e obter a desoneração do IVA[6]. Foi mantido o limite de 2.000 pesos uruguaios[7].
Na Argentina, desde 2020, é possível restituir 15% do IVA em compras de alimentos e medicamentos pagas em cartão de crédito por aposentados, pensionistas e titulares do subsídio universal por filho ou de gravidez cadastrados perante as autoridades competentes. O valor é devolvido automaticamente em 48 horas úteis na conta bancária do consumidor, respeitado o limite de 2.028 pesos argentinos por mês por beneficiário, o que pode chegar até 4.057 pesos argentinos, se o beneficiário estiver registrado em um programa social específico (Asignación Universal por Hijo – AUH) e tiver dois ou mais filhos[8]. Originalmente pensado apenas para o período da pandemia, o programa foi prorrogado até junho de 2023, sob o argumento de que ele é um instrumento eficaz de apoio aos setores vulneráveis e de incentivo à utilização de meios eletrônicos de pagamento[9].
A Bolívia implementou, em 2020, o Régimen de Reintegro en Efectivo del Impuesto al Valor Agregado (Re-IVA) para devolução de até 5% do valor do IVA incidente sobre operações com bens e serviços, aplicável para pessoas físicas com renda mensal de até 9.000 bolivianos, desde que as compras tenham sido objeto de emissão de nota fiscal eletrônica[10]. Os beneficiários do regime boliviano recebem, mensalmente, em sua conta bancária uma parte do IVA destacados em todas as faturas emitidas seus nomes. O programa não alcança operações com gasolina e diesel, eletricidade, água potável e gás doméstico, jogos de azar, entre outros. A necessidade de exigir notas fiscais eletrônica em cada compra, para que haja devolução do IVA, tem sido vista como um incentivo para a maior formalização do comércio na Bolívia[11].
De forma semelhante, desde 2020, a Colômbia implementou devolução do IVA para famílias em situação de pobreza e pobreza extrema, previamente cadastradas no banco nacional de dados[12]. A devolução do IVA independe do cadastro em programas assistenciais. Segundo informações do governo[13], em 2021 foram 2 milhões de pessoas beneficiadas com reembolso de até 80 mil pesos colombianos bimestralmente.
No Equador[14], os maiores de 65 anos de idade e as pessoas com deficiência têm direito à devolução do IVA pago por suas compras de bens e serviços de primeira necessidade adquiridos para uso e consumo pessoal, como saúde, educação, alimentação, cultura, entre outros. O valor máximo da devolução mensal depositado em conta é US$ 102 e os beneficiários devem realizar o pedido no sistema do governo, com entrega de documentos comprobatórios da operação.
Já no Canadá o tributo sobre o consumo (goods and services tax/harmonized sales tax – GST/HST) é devolvido em um valor fixo, por categoria de consumidor, como um crédito para aqueles que entregam declaração de imposto de renda, independentemente da qualificação do beneficiário como de baixa renda[15]. Mesmo que os contribuintes que não tenham recebido renda alguma durante o ano podem entregar a sua declaração de imposto de renda com o objetivo de receber a restituição do crédito do GST, o que acaba contemplando, ainda que indiretamente, a população de baixa renda. Para o período base de 2021 (e pagamento entre julho de 2022 e junho de 2023), a devolução do GST corresponde a US$ 467 para solteiros, US$ 612 para pessoas casados ou em união estável e de US$ 161 para cada criança com menos de 19 anos[16].
No Brasil, merece destaque o programa Nota Fiscal Gaúcha, que restitui parte ICMS pago para famílias com renda de até três salários-mínimos, inscritas no Cadastro Único, por meio de um cartão que pode ser utilizado em diversos estabelecimentos[17]. O valor devolvido é de até R$ 400 por ano, pago em quatro parcelas, desde que o cidadão consumidor peça a inclusão de seu CPF na nota fiscal[18].
Os modelos analisados têm em comum um limite máximo para o crédito a ser restituído, o que parece contrariar a ideia de combater a regressividade em sua plenitude. Um modelo que busca dar efetividade à capacidade contributiva de cada indivíduo não deveria ter limites de restituição, nem valores fixos.
No Brasil, a implementação de um sistema de cashback para o IBS poderia estar baseado no cruzamento de dados entre (i) a nota fiscal eletrônica, (ii) o cadastro de pessoas em situação de vulnerabilidade social, e (iii) a base de dados da Receita Federal, considerando tanto as informações das declarações de imposto de renda, como as retenções na fonte dos assalariados com baixa remuneração.
Os potenciais problemas a serem endereçados seriam o elevado número de pessoas de baixa renda sem registros fiscais, o pequeno percentual da população brasileira que entrega declarações de imposto de renda, além da informalidade do comércio acessado por tal parcela da população[19]. Entretanto, a existência de um programa de devolução do IBS tende a incentivar a busca pelo cadastro fiscal e a formalização da economia, como tem ocorrido na Bolívia. Nesse ponto, parece útil a ideia do modelo canadense de permitir a entregar da declaração de imposto de renda mesmo por aqueles que não têm renda, somente para fins da recuperação do tributo sobre o consumo. Além disso, seria possível criar uma espécie de cadastro de baixa renda específico para a restituição do IBS, independente dos programas de assistência social, como ocorre na Colômbia.
Ademais, a implementação do cashback de IBS no Brasil poderia se inspirar no modelo equatoriano, que, embora voltado a idosos e pessoas com deficiência física, chama atenção na medida em que cruza dois fatores: (i) o grau de “discapacidad“; e (ii) os tipos de produtos de primeira necessidade que dão direito à devolução. Por analogia, seria possível transportar essa diferenciação entre pessoas com diferentes graus de deficiência física para a diferenciação entre pessoas com condições financeiras distintas dentro do grupo da população de baixa renda.
Esse cruzamento poderia ser pertinente para o modelo brasileiro de cashback, no sentido de correlacionar (i) os diferentes grupos com baixa capacidade contributiva, e, de maneira inversamente proporcional, (ii) o percentual do tributo a recuperar, da seguinte maneira:
me comparado da experiência estrangeira a respeito da devolução do tributo sobre o consumo para a população de baixa renda nos instiga reflexões pertinentes à sua adaptação para o contexto brasileiro.
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O presente artigo decorre dos debates realizados no Núcleo de Pesquisas do Mestrado (Nupem) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). A opinião dos autores não necessariamente reflete a posição institucional do IBDT, nem dos professores e pesquisadores do Nupem.
[1] Valor Econômico. “Cashback está indefinido e pode beneficiar também não vulneráveis, diz Appy”. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/17/cashback-est-indefinido-e-pode-beneficiar-tambm-no-vulnerveis-diz-appy.ghtml>. Acesso em 31 mar. 2023.
[2] URUGUAI, Programa da Inclusion Financeira. Disponível em: <https://www.bps.gub.uy/bps/file/5076/1/nota-mef-bps.pdf> Acesso em 31 mar. 2023.
[3] URUGUAI. Decreto do Presidente da República n° 288/2012, Artículo 1-BIS.
[4] URUGUAI. Tarjeta BPS Prestaciones beneficia a usuarios de Asignaciones y Tarjeta Uruguay Social. Disponível: <https://www.gub.uy/presidencia/comunicacion/noticias/tarjeta-bps-prestaciones-beneficia-usuarios-asignaciones-tarjeta-uruguay>. Acesso em 31 mar. 2023. URUGUAI. Inclusión financiera. Disponível em: <https://www.bps.gub.uy/3541/inclusion-financiera.html> . Acesso em 31 mar. 2023.
[5] URUGUAI. Respuestas a preguntas frecuentes. Comercios – IVA personalizado. Disponível em: <http://faqs.mides.gub.uy/174381/>. Acesso em 02 abr. 2023.
[6]URUGUAI. IVA Personalizado, janeiro de 2023. Disponível em: <https://www.gub.uy/ministerio-desarrollo-social/comunicacion/publicaciones/iva-personalizado>. Acesso em 31 mar. 2023.
[7] URUGUAI. Lanzamiento del IVA personalizado para beneficiarios de Asignaciones Familiares – Plan de Equidad, julho de 2022. Disponível: <https://www.gub.uy/ministerio-desarrollo-social/comunicacion/noticias/lanzamiento-del-iva-personalizado-para-beneficiarios-asignaciones-familiares>. Acesso em 31 mar. 2023.
[8] ARGENTINA. Art. 77, Ley 27.467/2018, e Resolución General 4676/2020.
[9] ARGENTINA. AFIP extiende 6 meses el reintegro del 15 % para compras con débito para sectores vulnerables. Disponível em: <https://www.argentina.gob.ar/noticias/afip-extiende-6-meses-el-reintegro-del-15-para-compras-con-debito-para-sectores-vulnerables>. Acesso em 31 mar. 2023.
[10] BOLÍVIA. Ley 1355/2020 e Decreto Supremo 4435/2020.
[11] BOLÍVIA, Con el Régimen de Reintegro em Efetivo del IVA (Re-IVA). Disponível em: https://www.fps.gob.bo/wp-content/uploads/2022/02/REGIMEN-DE-REINTEGRO-EN-EFECTIVO-DEL-IVA-RE-IVA.pdf Acesso em 31 mar. 2023.
[12] COLÔMBIA. Art. 21, Ley 2010/ 2019, Decreto 419/2020.
[13] COLÔMBIA. El Gobierno devuelve del gasto en IVA $80.000 a los hogares más pobres. Disponível em <https://devolucioniva.prosperidadsocial.gov.co/>. Acesso em 31 mar. 2023.
[14] EQUADOR, Ley del Anciano, art. 74 Ley de Régimen Tributario Interno, art. 4, Reglamento para la Aplicación de los Beneficios Tributarios, Resolución NAC-DGERCGC20-00000059.
[15] CANADÁ. GST/HST credit. Informações disponíveis em: <https://www.canada.ca/en/revenue-agency/services/child-family-benefits/gsthstc-amount.html>. Acesso em 31 mar. 2023.
[16] CANADÁ. GST/HST Credit and Climate Action Incentive Payment. Disponível em: <https://www.canada.ca/content/dam/cra-arc/formspubs/pub/rc4210/rc4210-22e.pdf>. Acesso em 31 mar. 2023.
[17] BRASIL, Estado do Rio Grande do Sul. Art. 12-A, Lei Estadual/RS nº 14.020, de 25 de junho de 2012.
[18] BRASIL, Estado do Rio Grande do Sul. Programa Nota Fiscal Gaúcha alcança a marca de 2,9 milhões de usuários. Disponível em https://estado.rs.gov.br/programa-nota-fiscal-gaucha-alcanca-a-marca-de-2-9-milhoes-de-usuarios. Acesso em 31 mar. 2023.
[19] BARREIX, Alberto et al. Revisiting Personalized VAT: A Tool for Fiscal Consolidation with Equity. IDB Discussion Paper 939, 2022. p. 14.
Via JOTA